segunda-feira, 19 de março de 2007

Espelhos


Jogada na cama, sem qualquer preocupação maior com o espelho, que acabara de quebrar, ela se alienara das coisas terrenas. Enveredara por sonhos e metas,projetos que pretendia cumprir naquele ano que se iniciava.

Tinha-se por gorda, embora seu namorado a admirasse com cada quilinho a mais do seu corpanzil de um metro e oitenta. Também se tinha por feia, desajeitada e não ia com “os cornos do seu nariz”. Freud explica. Dizia sua colega de trabalho a quem era mais chegada e com a qual dividia o mesmo teto.

Aqueles alguns metros quadrados de moradia custavam os “olhos da cara”, se não fosse sua amiga de um ano e dois meses de firma , além de ficar maluca naquele cubículo também não pagaria o aluguel. Naquele exato instante, seu pensamento adornava-lhe a memória com o que de melhor tinha para lhe oferecer: a sua infância.

O ano vindouro seria de realizações, a sua mãe bem dizia que é de menino que se torce o pepino( ou algo parecido). Pois é, ela era agora mulher feita e desempregada, não mais aquela garotinha que vendia castanhas e usava os trocados para comprar papel de carta e estampas adesivas. Sempre desejando além. Sempre discordando do seu pai que lhe dava apenas o suficiente. Não tinha a estirpe nem as posses de suas amigas, mas fazia esforço para parecer semelhante dentre elas. Não fora enjeitada, é fato, mas não raro era preterida, mesmo se utilizando de todo seu arsenal de bajulações.

Sabe do que mais ? Foi bom para ela ter crescido. Não necessitava mais ser uma gordinha simpática com nariz antipático. Agora era uma gordinha antipática com nariz antipático. Mas seu namorado gostava do seu nariz. Também é fato.

Naquele ano teria que sair um casamento. Imaginava-se de noiva, olhando todos por cima, com a marcha nupcial soprando para longe suas mazelas diárias e seus desassossegos de final de mês, quando o dinheiro parecia querer fugir pelo tênue espaço entre um dia e outro.

Com o olhar fixo na parede vazia, ela mergulhava nos seus sentimentos. Meu deus, o que estava a fazer? Iria casar sem amar o seu namorado, sem amar nem a si mesma. Almejava apenas insurgir-se contra aquela vidinha de merda que levava. Pagar as contas. Sumir do mapa. Mostrar para as amigas de outrora que era uma gordinha antipática, mas rica. Realizar uma cirurgia plástica, parar de tomar chás de camomila para dormir e finalmente chegar ao topo. Mas a que preço ?

Com a precisão de uma mariposa aproximando-se da luz , deixou o quarto e desceu as escadas. No lado de fora um frio de rachar trazia-lhe a certeza da decisão que haveria de tomar. Encostou-se num orelhão:

-Alô, Juquinha, tô te esperando às nove. Um beijo.

Colocou algumas peças de roupa numa valise e escreveu um bilhete.

“ Cara amiga. Não tenho o dinheiro para o aluguel deste mês. Vou passar uns tempos com o Juquinha na casa dele. Por favor, invente uma estória pro Antenor. Pode ser aquela mesma da mãe doente.A aliança, no retorno eu decido se devo ou não devo. Você sabe.
Até breve. Cuide do Antenor para mim. Você sabe.
Eu sempre soube.
Bye."

O que ela não poderia prever era a embriaguez do Juquinha e a sua visita precoce ao paraíso.

Texto de Marcos André Carvalho Lins

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