sábado, 14 de fevereiro de 2009

Três textos ficção, três contos para você.



Depois da arte, o pensamento

Pensamento. Passou um voando por entre as veias do artista. Um pensamento-arte ou uma arte-pensamento.Um quinhão de ninfas nuas e despudoradas, uma vereda do mundo que não leva a lugar nenhum, uma música presa entre as grades do presídio.

- Calem ! Eu preciso pensar.

Antes pensar que ir para a calçada mendigar. Antes pensar do que depender da vontade alheia. Antes pensar do que fazer coisa feia.

O pensador-artista, ou o artista-pensador, é quase um autista pensando sobre o amor.

Atravessou a rua com o cérebro embriagado de pensamentos. Pensamentos vorazes em tons sombrios , quase detentos. Pensava a vida em prisões, em celas, em mulheres belas. Pensava a alma e em tudo que se aprisiona no interior dela.

De tanto pensar, não percebeu abrir o semáforo. Parado estava quando buzinadas lhe tiraram de tempo. Estagnou em frente às linhas desenhadas no asfalto. Galgou a calçada, lembrou as vestes listradas dos prisioneiros. Queria mesmo chegar ao final, ao seu intento.

Um ônibus veio-lhe tão próximo e seguia justo no sentido oposto. Mas um caminho, um trajeto, um caminho guarda um retorno.

Adentrou pensando, perambulando em divagações: o lotação da rua serena, número dois.

Sentiu-se preso novamente entre paredes, pessoas pensativas, buscando apoio entre balizas e sofrimento. Pensou na cadeia reprodutiva dos elefantes. Elefantes não esquecem e o pensamento jamais arrefece. O belo rosto da mais delgada jovem veio-lhe mente adentro.

Ela esperava por um período quase perpétuo. Pois, o sentimento é algo assim, pensamento incerto. Tempo de nascer, de crescer, de braços abertos. Punhos cerrados da vida, de quem reside sob o mesmo teto.

Grades são apenas extensões do mundo adverso. O pensamento, a chave para o mais profundo desabrigo.

Já não era o mesmo o pensador nem o artista, pensava
a clausura como protótipo de um futuro triste, onde a semente do amanhã quase inexiste. À margem da sociedade, os seres resistem, mas, quando menos, se cria nas cabeças uma dor perene, espécie de artrite.

Muito pouco se pode fazer por quem está escravo da própria razão e dos próprios sentimentos. A escolha fica por conta daquela que lhe espera: o pensador saiu do claustro e ganhou a face externa.

Ainda podia escutar gargalhadas, zoadas, gritos e grilhões de almas embalsamadas.

Em pensamento orou por todos os reféns dos muros. No presídio a liberdade também prospera: havia no pátio, no vento e na atmosfera, restos de vida, profundas feridas, duras experiências.

O pensador-artista, anarquista, flertou com seres pensantes durante uma tarde. Tornava agora para os braços de sua amada, o pensamento recorrente era de isolamento. Por detrás das portas, dos cadeados, marcas profundas.

A última ilustração veio-lhe sob o busto de sua amada.

Os seres internos, dentro de seus próprios castelos, esgarçam o próprio destino. Não há pássaros cantando, platéia aplaudindo, ou sorrisos, apenas o silêncio de quem pensa conhecer o desconhecido.

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A luz e a sombra


As estrelas, de olhar cálido e terno, se assemelhavam a sua mãe. Em algum lugar, ele podia escutar o sorriso e compreender os pensamentos de sua adorada genitora. Cada passo seu por esse mundo, tinha um pouco de Geninha, como ele a chamava carinhosamente. Ela não o apoiaria naquela decisão, mas parte dele também não concordava. De mais a mais, aquele capítulo já se tornara um grande equívoco em sua vida e a separação se impunha por si mesma. A casa já não era algo que o apetecia, a esposa já não a tinha como dantes. Ela voltara-se tanto para as tarefas domésticas, que conseguira converter-se apenas num luxuoso móvel de decoração, uma poltrona, talvez, às vezes, um criado mudo. Não a via como naqueles tempos tão repletos de memórias. Era fabuloso observá-la nua, vestindo-se para deitar, exibindo-se arteira em sua langerri de seda. Aquelas peças valorizavam-lhe as formas de seus um metro e meio bem distribuídos. Há meses não a procurava, entrara em conflito consigo por não compreender melhor o que não sentia por ela. Por alguma razão, real ou metafísica, seus instintos não mais a identificavam como fêmea. A mulher do Edmar era mais bonita, suas saias, ainda que no joelho, faziam-no elaborar mais fantasias do que sua companheira em trajes íntimos.

Ele precisava lembrar onde e quando tudo teve início. Era necessário vasculhar recordações.

1975.

Era uma noite de festa. Percebera com meros dezoito anos incompletos, uma moçoila de mechas onduladas às pontas e traseiro proeminente ( muito bem empregado, aliás, no requebrar despretensioso com o qual acompanhava a cadência efervescente da orquestra). Naquele ritmo, ela passaria por ele em instantes sem ao menos um número ou um endereço. Entrincheirou-se, então, à frente do salão, aguardando que o seu rebolado a trouxesse até seus braços. Por obra do azar, uma outra pessoa colocou-se entre ele e a destemida dançarina. Não era ninguém menos do que o namorado da pequena fazendo jus ao título e com o qual passou a desfilar durante todo o baile.

Não. Não foi bem ali.

1976.

Ele dirigia o seu táxi atento aos pedestres na calçada. Estava livre e aguardava um chamamento, um sinal. O semáforo avermelhou e a porta bateu repentinamente. Ele encarou o retrovisor e a imagem pareceu-lhe mais sonho que realidade, uma peça que sua visão lhe pregava. Não o era: a dançarina encontrava-se acomodada no banco traseiro do seu automóvel. Trazia as feições pálidas destoando com o aspecto saudável de outrora. Não só chorava muito como repetia, por vezes com brandura, mais adiante com raiva,um nome de três sílabas, para o qual ele não atentou. Mexia o tronco num movimento pendular. A sua inquietação, sua voz rouca e sua retinas em tons abrasivos davam-lhe uma feição ao mesmo tempo, horrenda e singela. Necessitava imediatamente de ajuda médica. Ele ainda perguntou-lhe a razão daquele descontrole, mas ela não parara de recitar a mesma palavra de modo obsessivo. Apenas disse-lhe, a certa altura, um vocábulo parecido com um bairro das imediações. Para lá ele seguiu enquanto a dançarina permanecia numa espécie de transe , incapaz de fazer-se compreender em todo o seu desvario. Novamente o farol obrigou-o a parar. Ouviu apenas a porta do carro estalar e a dançarina desaparecer entre os habitantes daquele logradouro.

Não ali ele não a havia desvendado ainda.

Dezembro de 1976.

Um colega taxista o convidou para uma noitada, a sua namorada traria consigo uma amiga afim de acompanhá-lo visto há tempos ele se encontrar só. O amigo advertiu-lhe, porém, que a tratasse com cuidados especiais pois a pobre passara recentemente por um processo de desintoxicação. Qual não foi sua surpresa quando foi lhe apresentada tal amiga e esta não era ninguém menos do que a dançarina. Apresentava-se tal como a vira pela primeira vez, sem sombras daquela que invadira seu táxi aos cacos.

Sim. O mundo dera uma volta naquela boate. Ela embora não o reconhecendo, demonstrou-lhe a confiança de quem o tinha em grande conta.

Em meio às luzes ofuscantes, os sons delirantes e as trevas incessantes, pouco eles se falaram. Algo brotou nela que ultrapassava a simpatia e atravessou a madrugada trancado no seu peito. A maneira como fora criada não permitia iniciativas da sua parte. Ele, por seu turno, a endeusara sujeitando-a à posição de uma porcelana rara, para qual qualquer ato brusco podia causar fissuras. Esse mito despertara-lhe o fascínio que resultou num pedido de casamento prematuro, mas decidido.

Às três da manhã, eles se despediram do outro casal. Deixaram para trás o barulho enervante da discoteca e tomaram um rumo conhecido apenas por ela. Dobra ali, vai por ali, vira a esquerda – eram suas ordens de co-pilota e única a ter consciência do destino.

O sol estava nascendo quando os dois aportaram numa parcela quase selvagem de praia. Eles se puseram à vontade no capô da brazília. Ela narrou-lhe as suas mazelas com as drogas e acusou seu namorado ( o do baile) pelo seu mergulho, quase sem volta, ao mundo dos tóxicos. O sol se esmerava em tecer o dia como uma costureira que confecciona um grande manto multicores onde cada fio, cada raio solar, tem um pormenor a acrescer aos horizontes de quem está a admirá-lo. Sob a égide do despontar da manhã, fizeram amor e combinaram a união sacramental.

1986.

Nove anos se passaram felizes e plenos de satisfação matrimonial. Ele não poderia apontar os erros , entre os acertos estava uma filha de dois aninhos. Quando veio-lhe a idéia do desenlace, ele estava à varanda e o ocaso estava presente tanto dentro como fora dele.

Como todo aquele sentimento adoeceu, ele não tinha justificativas plausíveis a propor. O fato é que, assim como tudo começou, com a aurora, foi ao entardecer que se consumou o desfecho. Enquanto o negrume tomava-lhe a vista da cidade, o cosmos assistia consternado a sua escolha pela solidão. Anoitecia aos poucos no seu coração.

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Na parada.

Sonhava miúdo. Elaborava pequeno. Quase dois metros de altura, não era pra menos. Ela tinha apenas metade da sua altura, olhos áridos, mudos e luxentos. Olhava-o com certo senão. Ele correspondia , sem qualquer razão. Se achegava sereno, dois metros de altura , fitou-lhe o traseiro, os seios, os joelhos. Avançou dois passos. Ela afastou-se três. Ele piscou um dos olhos. Olhar de cobiça e visual de burguês. Pediu um maço de cigarros no fiteiro. O truque aprendera com um amigo certa vez. As minas gostam de fumantes, passa uma imagem de adulto. Aprendera a dica para perder a cara de bobo: fumaça e pigarro. Novamente tornou a observá-la. Ela carregava uns livros consigo: Paulo Coelho. Decidiu usar de sua cultura e lábia:
- Eu sou o seu início , o seu fim e o seu meio.
- Como? – Ela quis olhá-lo nos olhos, mas uma
nuvem encobria-lhe a face. Além da altura que dificultava a interjeição fluir naturalmente, parecia que ela perdera, por um momento, a pose e ficara ruborizada.

Ele dimensionara bem os riscos: o máximo que receberia era uma gracinha, as mulheres adoram tirar sarro com a cara dos machos ousados. Aquele “como?”, entretanto, não veio programado, era um fator adverso ou um ruído na comunicação, isto aprendera no colégio. Não sabia como reagir ao “ como?” dela. Fingiu que não tinha dito nada, olhou para o céu como quem se pergunta se vai ou não chover. Curioso, todos costumam lhe indagar em forma de chacota: tá chovendo aí em cima ? Ou algo semelhante. Ela parecia querer dizer algo. Não vergou, porém, uma sílaba. Seu silêncio destoava com seu semblante que irradiava curiosidade, inquietude talvez. Um certo receio também.

O quadro não estava a seu favor, já quebrara o gelo e ela permanecia na defensiva. Ela agora o encarava a face com atenção: provavelmente iria perguntar seu nome ou outra coisa. Mas a mira dela estava focada no seu rosto. Sem dúvida pensava de onde viera uma criatura tão alta. Não disseram nada por instantes. Até que ela observou:
- Você não é o filho da professora de
Matemática ?
- Sim sou eu.- Ele respondeu orgulhoso como
quem já era um vitorioso.
Permitiu uma pausa providencial e completou.
- Por que?
- Nada não.
- Como?- foi a sua oportunidade de embaraçá-la.
- Eu não disse nada.
Ele sentiu-se aliviado por não ter conseguido nem
mesmo que ela se incomodasse com seu “como?”. Ao mesmo tempo, dizer que não disse nada, quando disse “nada não”, implicava um certo constrangimento. Talvez ela o tivesse visto há algum tempo, quando costumava freqüentar aulas com sua própria mãe. Nesse caso tratava-se de uma conhecida e não tinha a menor graça conquistar uma aluna de sua mãe. Ela o queria, mas ele não mais a desejava.

Um ônibus encostou e ela subiu-lhe os degraus, fez menção de dizer adeus, mas não desferiu um gesto. O seu último ato foi um olhar bem discreto.

Ele voltou-se para o lado oposto e seguiu.

A pé.

Marcos André Carvalho Lins é
bacharel em Direito formado na Universidade Federal de Pernambuco e ocupa o cargo de Técnico Judiciário Federal no TRT -6a Região (Pernambuco), sendo também escritor diletante

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