domingo, 15 de fevereiro de 2009

Textos-literatura

O corredor

Imaginava de tudo ao final do corredor. Desde pequeno, tinha receio de atravessar aquele corredor. No escuro. À noite. Muitas vezes não tinha sono, mas não ousava aquele trajeto imaginário, não ultrapassava a porta do seu próprio quarto. Quantas vezes encontraram-no dormindo dentro do armário? E quantas vezes deixava de sobre-aviso a lâmpada do aquário? Tantas e incontáveis. A infância tem dessas coisas. Agora, adulto, dono do seu nariz, caminhava encapuzado pro destino que deveria ser de outro.

Ou outra?

Não sabia bem quem o havia delatado.

Respondeu com nomes de filósofos. Era doutor em filosofia.

As perguntas vinham na seqüência. O sal nas feridas ardia.

Na clandestinidade, ninguém conhecia ninguém. Nomes falsos. Identidades frias.

O pai de Platão é advogado.

O pai de Sócrates, coronel da aeronáutica.

Ele, pobre Descartes, já se considerava descartado.

Classe média, filho de sapateiro com costureira, criado pela madrinha.

Retornou ao corredor. Tentava, na mente, uma assepsia. Varrer dos próprios pensamentos a dor, com uma ave-maria.

A prece fora, muitas vezes, por sua mãe recitada, nos períodos de agonia. Lembrava da mãe deixando-o, largando-o na casa da tia. Uma ave-maria, rezou ela, antes de entregar a guarda definitiva.

Fazer melhor, ela não podia.

Amém., A dor parecia infinda.

Continuava rumo ao final do corredor, cego, atordoado, definhando por todos os poros.

Ouviu um ranger de motor. Logo após, uma mão o acariciara. Era o último afago materno com o qual para sempre dormiria, fecharia os olhos e recordaria.

O corredor levantara vôo. Não sabia se durante meia hora ou uma hora e meia.

Podia sentir a presença de outros corpos. Um a um tomavam o rumo da porta.

Não estava absolutamente sozinho.

Um empurrão. Tornara ao ventre da sua mãezinha. Apenas pressentiu o fim, durante a ceia de páscoa. Quando sua tia o apresentara à sociedade. Um futuro grande homem – prevenia a todos.

Agora, nadava num útero. O negrume tornou-se uma infinita claridade. As vestes se desfizeram. Ouviu um enorme estampido, uma esquisita sensação de desabrigo.

E a voz da mãe: ave-maria,cheia de graça...

Ceifaram-lhe o cordão umbilical.

Atravessara, pela primeira vez, o corredor até o final.

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Verdades transitórias

A única coisa madura escapou-me, talvez uma pitada de luz ou um bocadinho de escuridão; talvez apenas a lágrima de um palhaço ou um sorriso dissimulado de um prisioneiro qualquer; talvez a fé que, de tanto mover montanhas, cansou; talvez o beijo na amante de um marinheiro em outro porto...

Quem sabe ali, bem no meio do caminho, não há distância suficiente para se enxergar uma paixão doente...Somente existirão estrelas no céu enquanto pessoas as olharem, as observarem, quando lhes viram as costas, provavelmente elas desaparecem. É assim também com as coisas tangíveis ( e as estrelas não são tangíveis? ) , no que as perdemos de vista , não há como assegurar que permanecem ou se extinguem...Não há como prever se uma pessoa acabou de chegar na tua vida ou se ela já está indo embora...Só se pode ter certeza, perguntando-lhe...Mas se a resposta não for convincente como nenhuma de coração o é , de todo, então também não há o que lamentar, pois o que resiste bravamente ao fim e ao início são pedaços de sentimentos perecíveis...

Não há nada mais triste do que aquilo que não existe nem no imaginário dos seres de ficção...Incapaz de se comunicar até por figuras de linguagem e de ser comunicado por estas mesmas figuras...Algo do que não se têm dúvidas, nem afirmações, nem requisitos plausíveis...Mais ou menos como uma sombra no deserto ermo e descampado, ou um vinco no caminho do cetim virgem...

Dentro de nós há um lugar, semi-oculto, semivivo, semi-morto, no qual tudo é possível, até o impossível...

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A testemunha

Incrédulo. Observava a testemunha com um olho raso de prazer e outro a estremecer. Sim. Ela havia assistido a algo horrendo e havia tido a reação natural para casos como aqueles: o surto histérico e nervoso. A minha reação é que me enervara. Nunca me havia ocorrido tamanha satisfação com a desgraça alheia. Encontrava-me compenetrado naquela estranha figura de quase dois metros de altura e nariz aquilino que se desmanchava em lágrimas, rente ao meu birô. - muito bem, senhor, repita, novamente, com mais calma e respirando, respirando, por favor...ele tossiu três vezes , uma tosse esganiçada como a de um cão doente. Tornou a contar a mesma ladainha. Entretanto, traduzida daquela maneira, em tom compassado, parecia algo completamente diferente. Se ele, realmente, presenciara, ou não, tudo aquilo, era tarefa para um investigador dirimir. O fato é que algo de muito suspeito ocorrera sob as narinas daquele senhor.

Já se fazia madrugada, porém, Angélica devia me aguardar na porta do hospital. Não que aquele homem me tivesse subtraído os pensamentos em Angélica, pois apenas nela eu me atinha durante todo o relato. A questão é que eu não podia me despedir , deixando para trás um homem fora de si . Tratava-se de tarefa humanitária e Angélica havia de compreender. Quanto a isso não me restavam questionamentos.

Sentei , ainda um pouco ímpio, com o homem no sofá vermelho e procurei palavras para restabelecer a normalidade entre nós. Nem eu podia ficar ali, estatelado, escutando o mesmo discurso mais um par de vezes, nem ele podia sair dali, da delegacia, sem uma boa dose de calmantes. Foi o que fiz. Ofereci-lhe alguns dos meus comprimidos e o conduzi, em seguida, até a saída, recomendando-lhe uma boa manhã de descanso. Uma escolta policial lhe daria guarida até sua casa. Nada mais havia por ser feito. Minha doce Angélica tornou-se, por fim, prioridade absoluta.

Quando encostei o corcel cinza em frente ao número quarenta e dois da rua das bananeiras, um rosto suave aproximou.- afinal , chegaste??? Retruquei algo incompreensível e, por estarmos ambos exaustos, não houve qualquer réplica ou contestação. Angélica, simplesmente, entrou no carro e partimos.

Enquanto me encastelava entre os braços de Angélica no nosso leito nupcial, o estranho testemunho daquele senhor ia e vinha à minha mente como um iôiô ideativo. Ora despertava-me ojeriza , ora dispensava aos meus instintos um tratamento bem mais complacente. O medo estampado na face daquele senhor, de alguma maneira lembrou-me algo que eu optara , há tempos , por varrer do meu repertório de recordações. A morte dos meus pais. Sim. Ele havia testemunhado dois velhinhos inertes entre uma ruela escura e uma grande avenida exatamente à zero hora de uma quarta-feira, dia quinze de maio. Os dois indivíduos em questão traziam as faces dilaceradas e jaziam nus como duas trouxas de roupa suja. Meus genitores morreram em casa, enquanto dormiam, vítimas de inescrupulosos assaltantes.o ponto em comum , além da idade das vítimas, consistia num detalhe: eu também , como aquele senhor, testemunhara os corpos despidos e alumiados pelo encarnado do sangue. Um dos tiros, dirigido a meu pai, desfigurara seu rosto de modo que os dois testemunhos , o meu e o daquele senhor, de alguma forma interpenetravam-se em coincidências.

Um dado, não obstante, eivava a história contada por aquele senhor, entre um levitar de sobrancelhas e um olhar de pavor, de inverossimilhanças relevantes. Quase como um fato extraído de um romance policial já manjado. Segundo ele, aquilo tudo havia sido obra de uma grande e peluda criatura, com, aproximadamente, dois metros de altura e garras afiadíssimas. Elementos impressionantes, se não fossem tão caricatos.

Nada daquela novela policial, entretanto , atravessara a barreira dos meus pensamentos e se aboletara nos ouvidos de Angélica. Àquela altura, ela dormia . Já penetrava em sono profundo, quando eu, delicadamente, desviei seu antebraço do meu tórax e num impulso sutil me desvencilhei do seu colo e subi à borda da cama.

Dei alguns passos até a cozinha conjugada e bebi um copo dágua.
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O dia seguinte não poderia ser mais surpreendente.

Depois de deixar Angélica no hospital, dirigi-me com meu corcel cinza ao meu próprio ambiente de labor. No caminho , deparei-me com um certo tumulto, mais ou menos na vizinhança do meu destino. Imediatamente parei o auto , enfiando-me em meio à multidão que se assemelhava a uma grande massa compacta de transeuntes , bem ali, próxima à esquina da rua dos emboabas. O meu assombro não poderia ser maior, quando presenciei , caída ali na calçada, a minha testemunha da madrugada anterior, completamente ensangüentada e sem pulsação. Minha primeira reação foi conectar-me com a viatura mais próxima por meio do rádio e pedir , com urgência, uma ambulância na área.

O homem , não havia dúvidas, estava morto. A hipótese mais plausível, conforme meu próprio batalhão de perícia , foi a de coma alcoólico, seguido de uma forte pancada na cabeça.

Na casa daquele senhor, que aparentemente morava sozinho, encontrou-se toda sorte de literatura e pôsteres de estórias de terror, incluindo perto da mesa um exemplar de “o lobisomem em quadrinhos ”. Além disso , verificou-se um par de vestimentas , lavadas há pouco, mas que ainda continham resquícios de sangue...
- Não me conte mais nada , investigador

Pois é, as vestes pertenciam ao casal de velhinhos.

Marcos André Carvalho Lins é
bacharel em Direito formado na Universidade Federal de Pernambuco e ocupa o cargo de Técnico Judiciário Federal no TRT -6a Região (Pernambuco), sendo também escritor diletante

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