domingo, 15 de fevereiro de 2009

Escrevendo a lágrima á sombra. (Um conto, duas poesias)

À Sombra

Aguardava embaixo de um exuberante carvalho , ou seria uma bananeira ? Não prestei atenção, para dizer a verdade, mas isso é o que menos interessa. O fato é que eu esperava, à sombra, o carteiro com o diário oficial. Meu nome deveria constar entre os primeiros colocados do concurso para escrevente. Área que, se não me causava furor, também não me trazia grandes dúvidas. Na realidade, era indiferente. O que importava era o pecúlio certo no final do mês e , finalmente , a realização de um sonho : o casamento com Doraci . Moça formosa, de encantos mil e cheirosa como uma rosa.

Ali estava eu, ansioso pela chegada do malote de correspondências que viria àquela hora da capital do estado. A prova, havia realizado com esmero e o gabarito, conferido, deixava-me numa excelente posição em relação aos demais candidatos. Alguém me perguntará como alcancei com tanta certeza uma conclusão dessa natureza. A resposta é bem simples, verifiquei comparativamente as minhas respostas com as do Elizeu, notoriamente um dos maiores valores de Rio Grande, e, sem dúvida , meu mais importante concorrente. Consegui três pontos à sua frente , três quesitos corretos meus e incorretos entre as soluções dele . Aquilo me deixou eufórico e preencheu-me de esperanças e sonhos.

Divagava com Doraci, entrando na igreja toda de branco, com o champanhe depois do casório, com a casinha que compraria financiada por uma instituição pública e com os rebentos, muitos deles, fazendo da minha vida um eterno paraíso, recheado de anjinhos e de uma santa . Doraci podia ser assim adjetivada. Uma santa. Vivia abnegada à família de pai, avô doente e dois irmãos “pinguços”. As situações vexatórias, por que passava , não eram poucas, mas mantinha muita fé em Nossa Senhora e no senhor Jesus. Apenas dessa forma, por meio da religião, arrebanhava forças para enfrentar todos os dilemas familiares. Toda aquela dedicação exagerada aos parentes, encerrar-se-ia, porém, depois das bodas. Não obstante, prometi-lhe, e não poderia ser de outra maneira, que seu pai e seu avô residiriam conosco. Os irmãos, por seus turnos, teriam de correr atrás de sua mantença , visto que , eram, até aquele instante, sustentados pela irmã. Não seria fácil desgarrar Doraci dos demais irmãos, pois havia laços de afeto fortes que os uniam. Entretanto, ela prometera deixá-los cuidar de seus narizes e me seguir , provavelmente, rumo à capital.

Todas aquelas vantagens de ser um servidor público transitavam pela minha mente, enquanto se demorava o meu futuro colega, servidor dos correios, a despontar naquele ponto do percurso. Ele desceria do ônibus leito exatamente naquele extremo da cidade e eu tinha de recepcioná-lo à altura da notícia que ele detinha em mãos, cujo teor, praticamente, traçaria uma linha divisória na minha existência , definiria um antes e um depois daquele momento.

Escorado o corpo no cajueiro ( ou seria uma bananeira, não sei ) adormeci. Entre meus sonhos desfilava Doraci, quase nua , num dos nossos banhos de rio onde ela, sutilmente, permitia-me tocar os bicos dos seus seios dourados e levemente umedecidos sob a camiseta solta. A primeira vez deu seqüência a muitas outras que, no entanto, nunca me encorajaram a ir além. Mas como era linda minha Doraci, olhos profundamente negros como aquela parte do rio onde desfrutei , ainda moleque, minha iniciação no terreno movediço do amor. Embora, sem jamais tê-la tomado em meus braços e a possuído, sabia desde sempre que ela seria minha eterna companheira com a qual partilharia todos os meus projetos dali por diante. Doraci acomodou-se no meu coração , e eu no dela, de modo quase casual , intuitivo, amor à primeira vista como costumam denominar comumente. Eu sabia que era dela e ela sabia que era minha. Jamais questionamos isso, desde aqueles sensuais namoricos no riachinho.

Ao despertar do meu sono lascivo, escutei um barulho esquisito, vindo do centro da cidade. fogos. uma festa, cujo epicentro se desenrolava na casa de Elizeu , meu amigo e antagonista . Aproximei-me e reconheci meus vizinhos , moradores das redondezas, cercando o jovem Elizeu como a um grande herói. Pensei comigo: se ele passou no concurso, eu também passei! Corri para casa saltitante e envaidecido. Pretendia ler meu nome escrito no diário oficial e sublinhá-lo para mostrar a Doraci.

Quando desemboquei no terraço do meu lar , encontrei com Doraci, aos prantos, com o jornal no colo, aparando-lhe as lágrimas. Abri um sorriso e disse em tom triunfante:

- Não chore, meu bem. Contenha essa emoção para as núpcias.

Ela olhou-me no rosto por um segundo e tornou a chorar. Minha mãe veio então ao meu encontro e esclareceu: eu não havia passado, o meu nome não constava da lista de aprovados.

Dirigi-me ao meu quarto em silêncio, deitei na cama, envergonhado. Senti o peso de todo o firmamento sobre meus ombros. Meus olhos embaçaram, mas não soltei um gemido. Passei vários dias comendo e falando pouco. Recuperei-me, lentamente, e no ano seguinte passei no vestibular para medicina, campo de trabalho que sempre me encheu as vistas.

Para cursar medicina , fui morar na capital,enquanto Doraci permanecia no interior. Não nos casamos , mas guardo boas recordações dela.

Na época, correu na cidade, à boca pequena, que a aprovação de Elizeu eram favas contadas, uma manobra , em se tratando de um sobrinho de desembargador. Não me perturbei.

Hoje sou feliz, do meu jeito, como , aliás, talvez não fosse, se tivesse ocupado um cargo público.

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Escrevendo.

Escuta a vida,
Quando embriaga a noite infinda
Zênite da lua errante

Teu nome grita,
À garoa fina
Luz, sombra e sangue

Sobre papel,
Tinta:
A mácula de idas e vindas

O céu freia,
O mundo pára,
Perde-se o novelo de sílabas

Na nudez fosca de uma página...

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Lágrima

Marés íntimas
Levam a m´gua
Insípida do tempo

Amálgama d´alma
Silêncio...



Marcos André Carvalho Lins é
bacharel em Direito formado na Universidade Federal de Pernambuco e ocupa o cargo de Técnico Judiciário Federal no TRT -6a Região (Pernambuco), sendo também escritor diletante

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