quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007

MARESIA (Conto extraído do livro “O Mar que nos separa” de Marcos André Carvalho Lins).



As ondas mornas sacudiam-lhes as madeixas numa trama peculiar e indefinida. A areia trazia-lhe o verdadeiro sentido de segurança, a paz granulada em ínfimos e íntimos pontos espalhados da nuca aos calcanhares. Nunca ficara daquela maneira, deitada , displicente, contra o vento que soprava na direção do litoral. Animaizinhos da fauna litorânea, como a pequena maria-farinha, corriam-lhe o corpo e, ao tocar sua rala penugem, arfavam-na , num tímido arrepio de liberdade. A luz do sol perpassava todos os poros da sua derme e, apesar de não ser do seu interesse, proclamava-lhe a longevidade do dia. Apertava os dedos com mais força contra a espuma marrom arremessada ao acaso pelas cristas das ondulações até a altura do seu ombro.

Desejava confundir-se com o próprio meio, entrar de tal forma em comunhão com a Terra que o próprio mar a respeitasse e a consagrasse sua meretriz predileta. Não se tratava de tarefa fácil, pois, por mais despida que estivesse, a sua cabeça não respondia à nudez do corpo. Do pescoço para cima, um véu de angústia e mágoa parecia contrapor-se ao seu intento.

Já devia encontrar-se, devidamente fardada, a doze quilômetros daquela praia. Optara, todavia, por trair a confiança do pai e da mãe, permanecendo naquele paraíso e fazendo amor com todos os elementos divinos a um só tempo, visto que, não conseguira entregar-se ao namorado na noite anterior.

Não possuía idade suficiente para ir além de um beijo com o filho do deputado. Ali, à margem de tudo, as coisas eram diferentes. Os pais não sabiam de sua paixão secreta por todos aqueles amantes comportados e não poderiam interferir.

Em certo instante, o oceano parecia querer levá-la. Já ultrapassava a marca do busto e ameaçava invadir-lhe a cintura. Cada centímetro dos seus seios já respingava água salgada. O ar revolto salpicava grãos sobre o seu ventre, o que a fazia lembrar a mão do filho do deputado sob sua camiseta frouxa.

Os pensamentos, mergulhados num buraco do chão lamacento, perturbavam-na. Testemunhara uma discussão entre seus pais e tomara ciência , sem querer , de segredos guardados há uma década e meia. Primeiro cogitara matar-se, depois arquitetara a vingança.

Aqueles dias na casa da praia vieram em boa hora. O plano era alvejar o coração dos pais no ponto mais vulnerável: o pudor hipócrita de uma geração conservadora. Falhara, porém. Faltaram-lhe forças para ir adiante.

Agora , à medida que o mar avançava, todos os seus sentidos ocupavam-se com o marulho e o sóbrio acariciar da brisa errante que, ora tangenciava-lhe a tez de modo aconchegante, ora ignorava-lhe as formas , fazendo subir do solo fofo um calor reconfortante.

À sua vista, mostravam-se duas palmeiras irrequietas, a balançar contra a imensa plataforma azul que se insurgia suprema acima de tudo e de todos. As duas árvores formavam um “v” entre si, e demonstravam saber mais sobre ela do que o próprio firmamento. O que elas conheciam , entretanto, era de sapiência geral: ela era uma boa filha, amorosa, estudiosa, e costumava virar dois dedos de vodka de quando em quando, apenas para tomar decisões mais sérias. Naquele momento, tinha mais de um copo de álcool a naufragar na química complexa de seu organismo. Assim, naquele estado, pôde desfazer-se das duas peças do maiô e esparramar-se entre as fronteiras urbanas das estradas barrentas e a imensidão inexoravelmente oceânica.

Agarrara com a mão uma concha que se alojara próxima ao ouvido-norte e adaptara os contornos de um às deformidades obtusas da outra. Pôde , então , escutar o cântico sonoro das profundezas onde, somente aos peixes mais estranhos, era permitido sucumbir.

De repente, algo mal entoado fluiu da saliência oca que adornava a sua orelha - era a voz do seu pai que gritava: adotiva! adotiva! adotiva!

Porém, ao mesmo tempo, uma ousadia marota inundou-lhe todos os espaços. A maré osculou-a, trazendo-lhe uma sensação de completude jamais alcançada. Estava grávida do cosmos, o infinito a preenchia.

Texto de Marcos André Carvalho Lins
Imagem de Osvaldo Barreto

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