sábado, 14 de fevereiro de 2009

Dois contos e um imprevisto


Carta de amor

Acordei certa noite com um barulho estranho. Era a vida fazendo ruído no assoalho da sala.
Com a lanterna fui até lá; ficamos um instante nos entreolhando.
Ela pediu-me apenas uma carta de amor: de amor à vida , pelo amor de Deus!
Curioso, só agora me dei conta de que nunca escrevi cartas de amor!
Concentrei-me e comecei a rascunhar numa folha de papel; o que colocar numa carta à vida?
Aguardava minha mente se abrir e algo brotar, não sei de onde.
Não há como colocar verbos na vida; é como colocar arreios em cavalo chucro, é como contemplar o vazio pela ordem inversa. Não da ótica de quem vem, mas pelos olhos de quem vai.
Esquisito desafio a esta altura: não sabia, mas já estava moribundo; minha vida se esvaía como um milésimo de segundo.
Era o último pedido que receberia; logo da vida, não poderia negar-me a realizá-lo!
Ela, a vida, concedeu-me uns instantes a sós para meditar sobre o libelo.
Ouvi por minutos o passado sorrir, senti o pranto do futuro; já estava, entretanto, seguro de onde e para onde começar.
Contaria primeiro da minha mãe, afinal amar a mãe é por onde se inicia a amar a vida.
Tratei , então, do meu pai; o que dizer de modo tão irreflexo daquele?
Passei a detalhar irmãos e amigos.
Nesse momento, a voz da vida me deteve; eu precisava apenas me escutar, disse-me
Somente mais tarde iria descobrir o que é amar a vida. Numa cama de hospital, muito mal, encontrei novamente a vida. Na mesa de cirurgia.
Ela interveio; escutai , disse-me.
Eram as derradeiras batidas do meu coração; prestei bem atenção e compreendi.
Se a mim, todos os dias, chegassem aos ouvidos os meus próprios pensamentos, um a um, e, percebendo-os como últimos e, ao mesmo tempo, próximos, com eles minha mente se ocupasse sem pressa , sem reservas, assim eu passaria a amar a vida!
A vida é um mero instante de compreensão de nós mesmos. É o fazer de tudo para tornar o tudo absoluto e não conseguir.
A vida é uma viúva de luto implorando uma ode de amor.


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Espelhos

Jogada na cama, sem qualquer preocupação maior com o espelho, que acabara de quebrar, ela se alienara das coisas terrenas. Enveredara por sonhos e metas, projetos que pretendia cumprir naquele ano que se iniciava.

Tinha-se por gorda, embora seu namorado a admirasse com cada quilinho a mais do seu corpanzil de um metro e oitenta. Também se tinha por feia, desajeitada e não ia com “os cornos do seu nariz”. Freud explica. Dizia sua colega de trabalho a quem era mais chegada e com a qual dividia o mesmo teto.

Aqueles alguns metros quadrados de moradia custavam os “olhos da cara”, se não fosse sua amiga de um ano e dois meses de firma , além de ficar maluca naquele cubículo também não pagaria o aluguel. Naquele exato instante, seu pensamento adornava-lhe a memória com o que de melhor tinha para lhe oferecer: a sua infância.

O ano vindouro seria de realizações, a sua mãe bem dizia que é de menino que se torce o pepino( ou algo parecido). Pois é, ela era agora mulher feita e desempregada, não mais aquela garotinha que vendia castanhas e usava os trocados para comprar papel de carta e estampas adesivas. Sempre desejando além. Sempre discordando do seu pai que lhe dava apenas o suficiente. Não tinha a estirpe nem as posses de suas amigas, mas fazia esforço para parecer semelhante dentre elas. Não fora enjeitada, é fato, mas não raro era preterida, mesmo se utilizando de todo seu arsenal de bajulações.

Sabe do que mais ? Foi bom para ela ter crescido. Não necessitava mais ser uma gordinha simpática com nariz antipático. Agora era uma gordinha antipática com nariz antipático. Mas seu namorado gostava do seu nariz. Também é fato.
Naquele ano teria que sair um casamento. Imaginava-se de noiva, olhando todos por cima, com a marcha nupcial soprando para longe suas mazelas diárias e seus desassossegos de final de mês, quando o dinheiro parecia querer fugir pelo tênue espaço entre um dia e outro.

Com o olhar fixo na parede vazia, ela mergulhava nos seus sentimentos. Meu deus, o que estava a fazer? Iria casar sem amar o seu namorado, sem amar nem a si mesma. Almejava apenas insurgir-se contra aquela vidinha de merda que levava. Pagar as contas. Sumir do mapa. Mostrar para as amigas de outrora que era uma gordinha antipática, mas rica. Realizar uma cirurgia plástica, parar de tomar chás de camomila para dormir e finalmente chegar ao topo. Mas a que preço ?

Com a precisão de uma mariposa aproximando-se da luz , deixou o quarto e desceu as escadas. No lado de fora um frio de rachar trazia-lhe a certeza da decisão que haveria de tomar. Encostou-se num orelhão:

-Alô, Juquinha, tô te esperando às nove. Um beijo.

Colocou algumas peças de roupa numa valise e escreveu um bilhete.

“ Cara amiga. Não tenho o dinheiro para o aluguel deste mês. Vou passar uns tempos com o Juquinha na casa dele. Por favor, invente uma estória pro Antenor. Pode ser aquela mesma da mãe doente.A aliança, no retorno eu decido se devo ou não devo. Você sabe.

Até breve. Cuide do Antenor para mim. Você sabe.
Eu sempre soube.
Bye.”

O que ela não poderia prever era a embriaguez do Juquinha e a sua visita precoce ao paraíso.


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III


FECHA A PORTA.
LEVA CONTIGO A DESILUSÃO
O SONHO AFASTA A ESCURIDÃO E PASSA
INFINITA MASMORRA DOS SENTIMENTOS
ESQUISITOS

ESQUISITA DOR QUE NÃO DÓI
APENAS ABSORVE A SORTE
DIVULGA A MORTE

ABRAÇO ESQUISITO DA SAUDADE
QUE LATEJA
TÃO ESQUISITO QUANTO A FERIDA
QUE NÃO SE ABRE AO VENTO

MEDIDA DE UMA COLHER DE CHÁ
DE PENSAMENTO
ESQUISITOS PENSAMENTOS
QUE PENSAM APENAS EM SI MESMOS

O BERÇO QUE RANGE
É APENAS O DEITAR-SE DE UM CORAÇÃO
PARTIDO

NINGUÉM OUVE
O RANGER ESQUISITO

APENAS UMA LÁGRIMA DISCORDA
SE ABOLETA ENTRE AS BOCHECHAS
PREGUIÇOSAS
E CRISTALIZA...


Marcos André Carvalho Lins é
bacharel em Direito formado na Universidade Federal de Pernambuco e ocupa o cargo de Técnico Judiciário Federal no TRT -6a Região (Pernambuco), sendo também escritor diletante

Anteriores:

Viajei, Terra, Mensagem. (José Dagostim)
Tudo Mudou Em Nós , Viver, À Meia-Luz Do Abajur Lilás. (Brigitte Luiza)
A ninhada, Rua, Loucura.(Oterrab Filo)
Ternura, Sinopse, O dia. (José Dagostim)
“Misteriosamente”, “Imprescindível Noite Do Ser”, “Ah! Esse Coração” (Brigitte Luiza)
Teu dolo, Poesia barata, Deus Grego (Oterrab Filo)
Miragem, Elementos, loucos e Loucos. (José Dagostim)
Lamúria
Ventania, Silêncio Raro, Disfarce (Brigitte Luiza)
Poemas de Brigitte (Acontece Que, Quantum Satis , Noite Fria)
Aurora, DA FARRA FILOSÓFICA, Travessia, RAIO XIS (Jesus)
Porta-bandeira, Suicídio empírico, Circunda
O silêncio, Gestos de busca, LUTO, ESTRELAS NUAS.
Ser humano, SER, APENAS AMAR, Beneditas
A fonte (Infância, Interfaces, Tiro no escuro)
Receita de ano novo
Feliz...
No princípio
Urbe
Valeu, Leandrão!!!
Saudades
Cosmo
Para ti
A rosa e o vento

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