Acordei certa noite com um barulho estranho. Era a vida fazendo ruído no assoalho da sala.
Com a lanterna fui até lá; ficamos um instante nos entreolhando.
Ela pediu-me apenas uma carta de amor: de amor à vida , pelo amor de Deus!
Curioso, só agora me dei conta de que nunca escrevi cartas de amor!
Concentrei-me e comecei a rascunhar numa folha de papel; o que colocar numa carta à vida?
Aguardava minha mente se abrir e algo brotar, não sei de onde.
Não há como colocar verbos na vida; é como colocar arreios em cavalo chucro, é como contemplar o vazio pela ordem inversa. Não da ótica de quem vem, mas pelos olhos de quem vai.
Esquisito desafio a esta altura: não sabia, mas já estava moribundo; minha vida se esvaía como um milésimo de segundo.
Era o último pedido que receberia; logo da vida, não poderia negar-me a realizá-lo!
Ela, a vida, concedeu-me uns instantes a sós para meditar sobre o libelo.
Ouvi por minutos o passado sorrir, senti o pranto do futuro; já estava, entretanto, seguro de onde e para onde começar.
Contaria primeiro da minha mãe, afinal amar a mãe é por onde se inicia a amar a vida.
Tratei , então, do meu pai; o que dizer de modo tão irreflexo daquele?
Passei a detalhar irmãos e amigos.
Nesse momento, a voz da vida me deteve; eu precisava apenas me escutar, disse-me
Somente mais tarde iria descobrir o que é amar a vida. Numa cama de hospital, muito mal, encontrei novamente a vida. Na mesa de cirurgia.
Ela interveio; escutai, disse-me.
Eram as derradeiras batidas do meu coração; prestei bem atenção e compreendi.
Se a mim, todos os dias, chegassem aos ouvidos os meus próprios pensamentos, um a um, e, percebendo-os como últimos e, ao mesmo tempo, próximos, com eles minha mente se ocupasse sem pressa , sem reservas, assim eu passaria a amar a vida!
A vida é um mero instante de compreensão de nós mesmos. É o fazer de tudo para tornar o tudo absoluto e não conseguir.
A vida é uma viúva de luto implorando uma ode de amor.
Texto de Marcos André Carvalho Lins
Imagem de Osvaldo Barreto
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