terça-feira, 20 de março de 2007

O corredor

Imaginava de tudo ao final do corredor. Desde pequeno, tinha receio de atravessar aquele corredor. No escuro. À noite. Muitas vezes não tinha sono, mas não ousava aquele trajeto imaginário, não ultrapassava a porta do seu próprio quarto. Quantas vezes encontraram-no dormindo dentro do armário? E quantas vezes deixava de sobre-aviso a lâmpada do aquário? Tantas e incontáveis. A infância tem dessas coisas. Agora, adulto, dono do seu nariz, caminhava encapuzado pro destino que deveria ser de outro.

Ou outra?

Não sabia bem quem o havia delatado.

Respondeu com nomes de filósofos. Era doutor em filosofia.

As perguntas vinham na seqüência. O sal nas feridas ardia.

Na clandestinidade, ninguém conhecia ninguém. Nomes falsos. Identidades frias.

O pai de Platão é advogado.

O pai de Sócrates, coronel da aeronáutica.

Ele, pobre Descartes, já se considerava descartado.

Classe média, filho de sapateiro com costureira, criado pela madrinha.

Retornou ao corredor. Tentava, na mente, uma assepsia. Varrer dos próprios pensamentos a dor, com uma ave-maria.

A prece fora, muitas vezes, por sua mãe recitada, nos períodos de agonia. Lembrava da mãe deixando-o, largando-o na casa da tia. Uma ave-maria, rezou ela, antes de entregar a guarda definitiva.

Fazer melhor, ela não podia.

Amém., A dor parecia infinda.

Continuava rumo ao final do corredor, cego, atordoado, definhando por todos os poros.

Ouviu um ranger de motor. Logo após, uma mão o acariciara. Era o último afago materno com o qual para sempre dormiria, fecharia os olhos e recordaria.

O corredor levantara vôo. Não sabia se durante meia hora ou uma hora e meia.

Podia sentir a presença de outros corpos. Um a um tomavam o rumo da porta.

Não estava absolutamente sozinho.

Um empurrão. Tornara ao ventre da sua mãezinha. Apenas pressentiu o fim, durante a ceia de páscoa. Quando sua tia o apresentara à sociedade. Um futuro grande homem – prevenia a todos.

Agora, nadava num útero. O negrume tornou-se uma infinita claridade. As vestes se desfizeram. Ouviu um enorme estampido, uma esquisita sensação de desabrigo.

E a voz da mãe: ave-maria,cheia de graça...

Ceifaram-lhe o cordão umbilical.

Atravessara, pela primeira vez, o corredor até o final.

Marcos André Carvalho Lins é
bacharel em Direito formado na Universidade Federal de Pernambuco e ocupa o cargo de Técnico Judiciário Federal no TRT -6a Região (Pernambuco), sendo também escritor "O mar que nos separa".

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