sexta-feira, 4 de maio de 2007

A CINDERELA CÍNTIA - Crônica


Ela morava na periferia. A vida reservava-lhe o que era comum às crianças do lugar: uma vida difícil, de vôos rasantes. Mas desde pequena, do alto do morro, os olhos cortando véus e amarras, sabia sonhar e voar alto. Lá embaixo, entre o mar e as faldas do morro, estava a pista de atletismo. Mal o sol iluminava o mundo, Cíntia punha-se à janela, sonhando. Via os atletas treinando e suas explosões de força e de dor. À tarde a viração trazia seus gritos e resmungos até ela. O que para outro poderia ser lamento e desânimo, para Cíntia era alegria e incentivo.
Um dia tomou coragem e resolveu acreditar em si mesma. Desceu o morro cedinho, com a leva de trabalhadores que se dirigiam para o centro da cidade e para a orla. Não teve vergonha de perseguir o seu sonho calçada em simples chinela de borracha, dessas que se prendem ao pé entre os dois dedos maiores.
Também não teve acanhamento de atravessar os portões do centro de treinamento e procurar o técnico de atletismo. Do morro sabia quem treinava os atletas e até seu nome: Joel. Contou a sua história e chamou-o pelo nome. Despertou imediata simpatia do treinador, que ficou intrigado por ela saber até o seu nome. Ela disse que a viração, toda tarde, trazia-o até ela. Sabia também os nomes da maioria dos atletas, e os foi enumerando um a um. Foi um momento de grande emoção. As lágrimas selaram a amizade com todos eles.
Joel olhou-a, avaliando seu potencial: era alta para seus 15 anos, corpo franzino, mas olhos sagazes e velozes, denunciando astúcia para aprender e perseverança para vencer. Pediu que desse uma volta no circuito, e ela o fez com a máxima força que tinha. “Nada mal para quem nunca correu”, disse o treinador ao final. Olhou para os pés da garota e perguntou: “Não tem tênis? Você não vai poder correr descalça”. Cíntia baixou as vistas envergonhada pela primeira vez. Os outros atletas desviaram os olhares. Joel coçou a cabeça e procurou resolver a situação, pegou-a suavemente pelo braço e conduziu-a ao vestiário. Havia lá alguns pares de tênis usados, doação da gente rica do asfalto para os atletas da comunidade. Um a um foi testando no pé de Cíntia. Estava quase desanimando quando finalmente um deles serviu. “Pronto!, esse é seu”. “Meu?”, disse a menina encantada. Ele confirmou com um aceno de cabeça. Joel explicou que deveria passar por um demorado treinamento, mas sua vaga estaria garantida entre as meninas dos 100m rasos. Nesse dia ela voltou ao morro pelo caminho das nuvens.
Foram três anos de intenso treinamento, em momento algum, como era comum entre suas parceiras de equipe, quis desistir. Havia algo por trás que a impedia: conhecia a vida no morro e todas as possibilidades que ela oferecia. Em nenhuma delas vislumbrava o êxito que o esporte lhe podia proporcionar. Estava certa que o esporte era o seu reino e Joel fora o seu príncipe encantado. Não à toa, desde o momento que voltara do vestiário com seu novo tênis as colegas passaram a chamá-la Cinderela.

Ele post nasceu da solicitação de uma estudante de jornalismo da Faculdade Estácio de Sá-RJ que precisava de uma crônica sobre atividade física para "fechar" a revista que seria sua prova de uma disciplina do curso. Fez-me a solicitação, via email, e eu topei na hora. Segundo ela, o trabalho "deu que chiou".
Interessante como a internet pode favorecer contatos e ações entre pessoas que sequer se conhecem. Quando o trabalho for publicado, se comprometeu a me avisar.
Fiquei feliz por ter tirado uma estudante de jornalismo de um "aperto", e com mais razão para me sensibilizar com a sua "causa" por também já ter trilhado o mesmo caminho na décado de 1980.
jjLeandro.

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