quarta-feira, 9 de maio de 2007

Estrelinhas - Conto


-Cuidado com o mar.

-Cuidado com o mar, Tzu.

Podia ainda escutar o eco daquelas palavras no meu coração. Palavras do meu pai. Ele sempre as repetia com pronúncia temerária. Foi o máximo que conseguimos extrair de carinho do velho senhor Hernesto. Eu era apenas mais uma estrelinha de uma constelação de oito astros. Oito irmãos, órfãos de mãe, falecida no derradeiro parto. Naquela época não havia os recursos da medicina moderna e pouca coisa se pôde fazer pela minha mãe. Por ter sido eu exatamente o último, perseguia-me a sombra da culpa, que sempre enxergava no olhar dos meus irmãos, embora nenhum deles me houvesse acusado, por um minuto, de alguma coisa.

Meu pai conversava conosco por fábulas. Certa feita, relatou-nos a estória de um tigre. Não lembro em detalhes, apenas que estavam o tigre e o caçador. Este decidiu descansar e adormeceu. O tigre apossou-se da arma de fogo do caçador e... Nesse ponto perderam-se minhas memórias, de fato, não me recordo do final. O meu nome? Não sei da sua origem, apenas tenho ciência de sermos, todos nós, os oito, fruto da imaginação rica em nuances do meu pai. Éramos Tzuno Américo, Hérvin Cirino, Larson Túlio entre outros semelhantes disparates. Chamavam-me Tzu , de Tzuno. Entretanto, Orgulhava-me a alcunha, não haveria outro Tzu nas redondezas, na escola e, quiçá, em todo o planeta. Bem ou mal, seria uma maneira do meu pai jamais se perder de suas estrelinhas.

Completara, há pouco, a décima quinta primavera de vida, quando meu pai gritou “cuidado com o mar” pela última vez. Eu encontrava-me mais ou menos neste ponto, à beirada da imensidão azul de águas salgadas. Tornara àquela praia, sem adiantar o motivo à minha esposa e aos meus filhos, talvez uma forma de reverenciar o fantasma do velho Hernesto.

Aluguei a mesma casinha que nos abrigava aos verões durante quinze inesquecíveis anos. Das estrelinhas, restavam apenas eu e o Hérvin , que não casara, não tivera filhos e vivia comigo, entrevado numa cadeira de rodas. Ele, com certeza, saberia o que o tigre fez com o rifle do caçador, mas, naquele momento, não havia como me dirigir a ele. Encontrava-me sozinho com o olhar perdido na vasta costa litorânea onde, um dia, as estrelinhas do seu Hernesto foram felizes, brincando nas marolas encrenqueiras e aprendendo com o próprio pai a nadar.

Almejava encontrar respostas. Como fomos nove homens, não compreendia muito bem a ótica singular do dito sexo frágil. Desconhecia razões que agora me seriam cruciais para desvendar a inusitada gravidez autônoma da minha única filha mulher. Deveria aceitar e resignar-me, ao que ela comumente denominava de produção independente, ou deveria procurar, a todo custo, o genitor do feto, notificá-lo e permitir-lhe tomar as providências que lhe fossem do interesse. Tentar, ao menos? Em caso afirmativo, em desejando descobrir o responsável, não seria difícil. Estava de posse do diário de Maria de Lourdes, minha filha. Sem que desconfiasse, furtei-o e não pesaria, nem um pouco, na minha consciência, arrombar-lhe a fechadura e ler seu conteúdo. Não dividiria uma responsabilidade dessa magnitude com o mano Hérvin, ele também andava ressabiado com a determinação da sobrinha predileta. Cabia a mim, uma vez que a mãe, minha esposa, já entregara a Deus, a tarefa de dissuadi-la daquela idéia .

Vagava por estes pensamentos, quando meu caçulinha aproximou-se.

- Vi quando o senhor saiu de casa e se dirigiu ao mar. Não o segui, achei que desejava ficar sozinho.
-Obrigado, meu filho, vá para dentro. A madrugada está fria e você pode resfriar.
-Vi também quando o senhor pegou o diário de Lourdes sem ela perceber. O senhor pretende abrir?
-Não sei. Vá para dentro, moleque, e nem uma palavra a sua irmã.
-Sabe, pai, o senhor sempre diz para eu ter cuidado com o mar. Mas você nunca diz isso a ela.
-Para ela ter cuidado com o mar?
-Para ela se cuidar, pai.

Por um décimo de instante trocamos, eu e meu filho, um olhar de cumplicidade. Ele parecia adivinhar meus segredos mais íntimos e não me agradava em nada aquilo. Ao mesmo tempo, envaidecia-me ter um filho capaz de tocar-me tão profundo nas feridas.

Não contra-argumentei. Conhecia-o suficientemente bem para saber que não desistiria e permaneceria me contestando até o limite da minha tolerância. Com um gesto brusco, como um pastor que arrebanha seu gado, imprimi a minha estrelinha o movimento veloz no sentido oposto àquele do qual havia surgido repentinamente.

Ele, todavia, com apenas treze anos, fez-me mudar o curso completamente das minhas divagações solitárias. É verdade. Eu nunca havia me ocupado muito da minha estrelinha primogênita. No mundo do meu pai, um simples cuidado com o mar bastava. Hoje, porém, tem de se ter outros cuidados e o rigor tem de ser dobrado. Cuidado com as más companhias, com as drogas, com uma gravidez indesejada. Eu nunca havia dito a minha filha que não era certo engravidar com dezenove anos. Eu nunca lhe ensinei como se precaver de tais mazelas. Deixei para a mãe, como se apenas minha esposa a tivesse gerado. Eu nem mesmo parara alguma vez meus afazeres para escutá-la. Eu desejava apenas que ela me respeitasse, eu não queria uma medalha como pai do ano, tampouco desejava ser um pai omisso. E agora que minha estrela-mor precisava de mim, mais do que nunca , eu ia desapontá-la, ia agir conforme minhas convicções, que provieram do mundo do meu pai, e passar por cima das dela. Ela não ia me perdoar se eu realizasse o que pretendia inicialmente. Principalmente, que pai seria eu ao arrombar a mente da minha filha para obrigá-la a se portar do modo que, no mundo do meu pai, seria o mais correto? Ela se sentiria, exatamente, como eu me senti quando minha estrelinha caçula invadiu a seara dos meus pensamentos. Ela se sentiria sitiada e não injustamente.

Retornei cabisbaixo, ao quarto, antes do amanhecer, pé ante pé, recoloquei o diário na cabeceira de Lourdes e deitei-me novamente ao lado da minha esposa. Aprendi, naquele interstício, que nem todas as justificativas nos obrigam a acreditar que estamos certos apenas por que, assim ,ou assado, foi-nos ensinado, enquanto aprendizes. O mundo gira e com ele as coisas transcendem o patamar estático do nosso vulgar conhecimento. Nunca é tarde para aprender a respeitar essas infinitas incógnitas chamadas motivações, afinal são elas que fazem o ser humano mais humano.

E, há propósito, Hérvim, na manhã seguinte, relembrou-me o final da fábula do tigre: o tigre consegue apanhar o rifle do caçador, mas como não sabe o que fazer com ele, devolve-o ao caçador. Moral da estória: A vantagem só é útil a quem sabe o que fazer com ela.

Texto de Marcos André Carvalho Lins

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