quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

DIURNO, DESPERTAR, O CHÃO DE GIZ.


DIURNO

O SOL, DE SOLIDÃO
O CÉU, DE SERVIDÃO
O MAR, DE ORGULHO E PAIXÃO
O VENTO, DE ADEUS, ATÉ UM DIA...
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DESPERTAR

Seus olhos percorriam o cômodo, amedrontados e curiosos. As mãos, mais sutis, apalpavam as estruturas metálicas e os tubos que pareciam ir do nada a canto nenhum. O quarto do esquecimento, era assim que imaginava o inferno, algo como trancar-se e jogar a chave fora. Aquilo, porém , não sentia como fruto de maquinações pueris ou filosóficas. Tratava-se de realidade demais para um devaneio, verdade demais para se apreender apenas com um pensamento.

Sendo ou não um sonho mau, ele precisava acordar. Não que estivesse dormindo , mas os objetos estavam além do seu alcance e não distinguia bem se estáticos ou se estavam girando em torno dele como planetas em redor do sol. De alguma maneira, sóbria ou alucinada, situava-se no centro de toda uma parafernália cinzenta e distante, embora fosse capaz de tocá-la com a ponta dos dedos.

Arriscou desprender um som com o esforço labial máximo possível a vista de tantos apetrechos tolhendo-lhe a fala. Assim mesmo algum ruído sangrou de suas cordas vocais e tomou a forma de um chiado suavemente audível.

Uma moça surgiu a sua frente e precipitou-se com os olhos arregalados sobre ele. Desapareceu no mesmo átimo de segundo em que apareceu. Seria Eugênia ? As feições correspondiam às suas lembranças.

A última vez que estivera com Eugênia fora durante uma recepção em sua casa de praia. A dança à beira da piscina com o vento sussurrando baixinho as sua sortes “ para sempre juntos” . Inesquecível para ele. À memória veio-lhe também a echarpe da namorada caindo oportunamente na piscina. Ele mergulhou , então , no seu encalço. À tona, com o pedaço de pano entre os dentes, entregou-lhe à borda como um cachorrinho. Arrancou-lhe gargalhadas e mimos como se faz a animaizinhos amestrados.

Assustados, cercavam-no agora, meia dúzia de pessoas. Algumas se distinguiam por utilizarem vestes sóbrias. A euforia tumultuava o ambiente e deixavam-no ainda mais confuso. Atônito, ele sibilava, procurando um meio qualquer de conter aquele rebu. Não entendia porque tantos desconhecidos, por unanimidade, decidiram ir de encontro à regra estampada na parede. Uma mulher distinta com um gesto adequado sinalizava pedindo silêncio.” Espere!” – atinara de repente- “ Uma enfermeira!”
Estava num hospital, concluíra. Não estava morto ou alheio a tudo. Discernia aos poucos as figuras e os conteúdos. As vozes, estas entoavam aos seus ouvidos de modo familiar.

Feliz, passara a etapa seguinte: a liberdade. À medida que lhe eram retirados os tubos, seu corpo sentia-se aliviado. Um reles café da manhã gozava ao seu paladar do mérito de um farto banquete. Um mero copo de leite inundava-lhe o organismo como um vinho do porto da melhor safra.

A luz do dia inaugurava uma nova formulação de viver que não estava contida em frases ou textos inteiros, mas numa mísera manhã de ócio. Suas revisões filosóficas precisavam ser divulgadas e ninguém melhor do que Eugênia para a tarefa. Todos estavam ali, menos Eugênia. Perguntou aos pais pela namorada inúmeras vezes. As respostas sempre deixavam a desejar, não o confortavam muito.

No seu último dia de permanência entre doutores, seu pai deixou ao lado, na cabeceira, um jornal com a foto de Eugênia impressa. Ele nunca soube se por descuido ou intencionalmente. O fato é que o pai abrira-lhe uma janela de dor e culpa. Um caminho que o fazia sentir vontade de nunca ter despertado, de jamais sequer ter nascido.

Estava tudo no papel em letras garrafais: ele foi o responsável pelo acidente, estava alcoolizado, e o pior Eugênia vinha no banco de passageiros. Ao contrário dele Eugênia não saiu do coma e teve a morte cerebral sentenciada.

Num esforço além do permitido pelos médicos, ele ousou levantar-se e dar alguns passos até a janela. Inspirou profundamente. O ar manhoso que lhe invadia os pulmões deu-lhe um acalento e o empurrão necessário para entreolhar o que seria o resto de sua vida. À mente vinha-lhe a respiração de Eugênia num melódico “para sempre juntos .“

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O CHÃO DE GIZ

AS ONDAS CONFESSAM
LEVARAM TEU CORPO DALI
PRA LONGE, TÃO LONGE
DO CHÃO DE AREIA PARA O CHÃO
DE GIZ

AS ESPUMAS ENCOBREM
TEUS RESTOS DE VIDA
PISCAS UM OLHO
ENQUANTO O OUTRO ABSORTO
MAIS PERTO DE MIM

AS ÁGUAS SALGADAS INUNDAM
TEU ROSTO
E TUAS LÁGRIMAS PARECEM
SOZINHAS A CHORAR

CRIANÇAS BRINCAM EM TORNO DE TI
RISCAM O CHÃO
O CHÃO DE GIZ... 


Marcos André Carvalho Lins 
É bacharel em Direito formado na Universidade Federal de Pernambuco e ocupa o cargo de Técnico Judiciário Federal no TRT -6a Região (Pernambuco), sendo também escritor diletante.

2 comentários:

Unknown disse...

muito bom
adorei o conto
;)
e sobretudo ter encontrado Sereia de Oscar Rosas por esses cantos virtuais.
parabéns, sou-vos seguidor.
abraço forte,

Christiano Scheiner

Luísa Nogueira disse...

Olá, Marcos!

Por acaso encontrei seu blog. Cliquei em "Estrelas", blog que acompanho, e veio o "Veneza de Brasileiros".
Mas, li e gostei. Vou voltar mais vezes, com mais tempo...
Luísa