quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

A santa

A imagem que eu tinha dela era de uma santa. Uma nossa senhora plantada nos meus sentimentos, incrustada nos desígnios do criador. Não é por nada não, mas que ela era beata , isso ela era. Um sonho de criatura, austera e pura. Amava-a com todo sangue e todo o corpo. Meu Deus, agora estava ela ali sorrindo aos meus pés, tão tenra e, num só momento, amarga. Num impulso levei as mãos aos olhos, cerrei-os, confinados entre as palmas. Não havia o que dizer, tudo já havia sido dito ou simplesmente esquecido.

Olhei as outras almas que se compadeciam de mim, daquele episódio lamentável, daquela data fraudada pelo livro do tempo. Eu escutava um choro, uma voz de criança, e um pranto de adultos dissipados entre todos aqueles figurantes do absurdo. O filme parecia tomar as rédeas para si, dominava um odor de mundo, um caos de indulgentes, de maltrapilhos, que só dispunham daqueles andrajos surdos, oriundos da má-vontade de colorir as faces e irradiar a aurora.

Passou-me pelo coração que nunca mais a veria, triste sina a minha, terminar justo quando mais a merecia. Havia posto um fim no caso com a outra, enfim sós, depois de dois anos, duas camas e dois casamentos. Àquela época, não era nada justo, como hoje, a outra tinha que defender o seu, na minha história específica a outra tinha um filho bastardo no ventre. Tinha não. Era mentira, mas uma falácia que durou quase dois meses.Quando desatei aquele nó, não dei confiança mais à outra, fui minguando os presentes, os cheques, a minha presença foi arrefecendo nos horizontes dela.

Ela tentou de tudo, disse que ia contar e contou. Agora estava eu, sem amor e sem amante. A outra foi a causadora de todo aquele vexame. Minha santinha passou mal, eu vi quando o anjo veio socorrê-la. Sim. Um anjo de asa e tudo mais. Ele olhou pra mim com ódio no olhar, anjos não deveriam odiar. Mas ele olhou pra mim, como eu próprio me olharia diante de um espelho, zangado, sentindo o peso do ultraje cometido a minha santinha . Ela rezava todos os dias trinta pais nossos e vinte ave-marias.Dizia que era para melhorar as suas primaveras, aqui entre os mortais, pois sabia que sua debilidade a tornava um alvo fácil de achaques e disritmias.

Era toda cristal, minha santinha. Pensei nunca quebrar, mas a outra realizou os meus piores pesadelos.

Nos meus sonhos a minha santinha era um vaso de porcelana rara, daqueles que nunca se tem próximo, apenas distante, a enfeitar uma sala ou um canto qualquer da casa. Um vaso, que agora era uma urna, guardava a sete chaves os segredos de sua própria desventura.

Quanto à outra, foi pra lá, ao velório, falsa, derramar lágrimas de crocodilo. E quando eu ia deixando a capela em direção a marcha derradeira, últimos passos até o crematório, tive uma epifania: podia jurar que a outra saíra de lá sorrindo com o anjo a tiracolo. Eu podia jurar que era aquele mesmo olhar de ódio, aquela mesma figura que se antecipou a mim e levou minha santinha ao território dos mortos.

Texto de Marcos André Carvalho Lins

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