Olhei as outras almas que se compadeciam de mim, daquele episódio lamentável, daquela data fraudada pelo livro do tempo. Eu escutava um choro, uma voz de criança, e um pranto de adultos dissipados entre todos aqueles figurantes do absurdo. O filme parecia tomar as rédeas para si, dominava um odor de mundo, um caos de indulgentes, de maltrapilhos, que só dispunham daqueles andrajos surdos, oriundos da má-vontade de colorir as faces e irradiar a aurora.
Passou-me pelo coração que nunca mais a veria, triste sina a minha, terminar justo quando mais a merecia. Havia posto um fim no caso com a outra, enfim sós, depois de dois anos, duas camas e dois casamentos. Àquela época, não era nada justo, como hoje, a outra tinha que defender o seu, na minha história específica a outra tinha um filho bastardo no ventre. Tinha não. Era mentira, mas uma falácia que durou quase dois meses.Quando desatei aquele nó, não dei confiança mais à outra, fui minguando os presentes, os cheques, a minha presença foi arrefecendo nos horizontes dela.
Ela tentou de tudo, disse que ia contar e contou. Agora estava eu, sem amor e sem amante. A outra foi a causadora de todo aquele vexame. Minha santinha passou mal, eu vi quando o anjo veio socorrê-la. Sim. Um anjo de asa e tudo mais. Ele olhou pra mim com ódio no olhar, anjos não deveriam odiar. Mas ele olhou pra mim, como eu próprio me olharia diante de um espelho, zangado, sentindo o peso do ultraje cometido a minha santinha . Ela rezava todos os dias trinta pais nossos e vinte ave-marias.Dizia que era para melhorar as suas primaveras, aqui entre os mortais, pois sabia que sua debilidade a tornava um alvo fácil de achaques e disritmias.
Era toda cristal, minha santinha. Pensei nunca quebrar, mas a outra realizou os meus piores pesadelos.
Nos meus sonhos a minha santinha era um vaso de porcelana rara, daqueles que nunca se tem próximo, apenas distante, a enfeitar uma sala ou um canto qualquer da casa. Um vaso, que agora era uma urna, guardava a sete chaves os segredos de sua própria desventura.
Quanto à outra, foi pra lá, ao velório, falsa, derramar lágrimas de crocodilo. E quando eu ia deixando a capela em direção a marcha derradeira, últimos passos até o crematório, tive uma epifania: podia jurar que a outra saíra de lá sorrindo com o anjo a tiracolo. Eu podia jurar que era aquele mesmo olhar de ódio, aquela mesma figura que se antecipou a mim e levou minha santinha ao território dos mortos.
Texto de Marcos André Carvalho Lins
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