Incrédulo. Observava a testemunha com um olho raso de prazer e outro a estremecer. Sim. Ela havia assistido a algo horrendo e havia tido a reação natural para casos como aqueles: o surto histérico e nervoso. A minha reação é que me enervara. Nunca me havia ocorrido tamanha satisfação com a desgraça alheia. Encontrava-me compenetrado naquela estranha figura de quase dois metros de altura e nariz aquilino que se desmanchava em lágrimas, rente ao meu birô. - muito bem, senhor, repita, novamente, com mais calma e respirando, respirando, por favor...ele tossiu três vezes , uma tosse esganiçada como a de um cão doente. Tornou a contar a mesma ladainha. Entretanto, traduzida daquela maneira, em tom compassado, parecia algo completamente diferente. Se ele, realmente, presenciara, ou não, tudo aquilo, era tarefa para um investigador dirimir. O fato é que algo de muito suspeito ocorrera sob as narinas daquele senhor.
Já se fazia madrugada, porém, Angélica devia me aguardar na porta do hospital. Não que aquele homem me tivesse subtraído os pensamentos em Angélica, pois apenas nela eu me atinha durante todo o relato. A questão é que eu não podia me despedir , deixando para trás um homem fora de si . Tratava-se de tarefa humanitária e Angélica havia de compreender. Quanto a isso não me restavam questionamentos.
Sentei , ainda um pouco ímpio, com o homem no sofá vermelho e procurei palavras para restabelecer a normalidade entre nós. Nem eu podia ficar ali, estatelado, escutando o mesmo discurso mais um par de vezes, nem ele podia sair dali, da delegacia, sem uma boa dose de calmantes. Foi o que fiz. Ofereci-lhe alguns dos meus comprimidos e o conduzi, em seguida, até a saída, recomendando-lhe uma boa manhã de descanso. Uma escolta policial lhe daria guarida até sua casa. Nada mais havia por ser feito. Minha doce Angélica tornou-se, por fim, prioridade absoluta.
Quando encostei o corcel cinza em frente ao número quarenta e dois da rua das bananeiras, um rosto suave aproximou.- afinal , chegaste??? Retruquei algo incompreensível e, por estarmos ambos exaustos, não houve qualquer réplica ou contestação. Angélica, simplesmente, entrou no carro e partimos.
Enquanto me encastelava entre os braços de Angélica no nosso leito nupcial, o estranho testemunho daquele senhor ia e vinha à minha mente como um iôiô ideativo. Ora despertava-me ojeriza , ora dispensava aos meus instintos um tratamento bem mais complacente. O medo estampado na face daquele senhor, de alguma maneira lembrou-me algo que eu optara , há tempos , por varrer do meu repertório de recordações. A morte dos meus pais. Sim. Ele havia testemunhado dois velhinhos inertes entre uma ruela escura e uma grande avenida exatamente à zero hora de uma quarta-feira, dia quinze de maio. Os dois indivíduos em questão traziam as faces dilaceradas e jaziam nus como duas trouxas de roupa suja. Meus genitores morreram em casa, enquanto dormiam, vítimas de inescrupulosos assaltantes.o ponto em comum , além da idade das vítimas, consistia num detalhe: eu também , como aquele senhor, testemunhara os corpos despidos e alumiados pelo encarnado do sangue. Um dos tiros, dirigido a meu pai, desfigurara seu rosto de modo que os dois testemunhos , o meu e o daquele senhor, de alguma forma interpenetravam-se em coincidências.
Um dado, não obstante, eivava a história contada por aquele senhor, entre um levitar de sobrancelhas e um olhar de pavor, de inverossimilhanças relevantes. Quase como um fato extraído de um romance policial já manjado. Segundo ele, aquilo tudo havia sido obra de uma grande e peluda criatura, com, aproximadamente, dois metros de altura e garras afiadíssimas. Elementos impressionantes, se não fossem tão caricatos.
Nada daquela novela policial, entretanto , atravessara a barreira dos meus pensamentos e se aboletara nos ouvidos de Angélica. Àquela altura, ela dormia . Já penetrava em sono profundo, quando eu, delicadamente, desviei seu antebraço do meu tórax e num impulso sutil me desvencilhei do seu colo e subi à borda da cama.
Dei alguns passos até a cozinha conjugada e bebi um copo dágua.
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O dia seguinte não poderia ser mais surpreendente.
Depois de deixar Angélica no hospital, dirigi-me com meu corcel cinza ao meu próprio ambiente de labor. No caminho , deparei-me com um certo tumulto, mais ou menos na vizinhança do meu destino. Imediatamente parei o auto , enfiando-me em meio à multidão que se assemelhava a uma grande massa compacta de transeuntes , bem ali, próxima à esquina da rua dos emboabas. O meu assombro não poderia ser maior, quando presenciei , caída ali na calçada, a minha testemunha da madrugada anterior, completamente ensangüentada e sem pulsação. Minha primeira reação foi conectar-me com a viatura mais próxima por meio do rádio e pedir , com urgência, uma ambulância na área.
o homem , não havia dúvidas, estava morto. A hipótese mais plausível, conforme meu próprio batalhão de perícia , foi a de coma alcoólico, seguido de uma forte pancada na cabeça.
Na casa daquele senhor, que aparentemente morava sozinho, encontrou-se toda sorte de literatura e pôsteres de estórias de terror, incluindo perto da mesa um exemplar de “o lobisomem em quadrinhos ”. Além disso , verificou-se um par de vestimentas , lavadas há pouco, mas que ainda continham resquícios de sangue...
- Não me conte mais nada , investigador
Pois é, as vestes pertenciam ao casal de velhinhos.
Texto de Marcos André Carvalho Lins
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