quinta-feira, 22 de março de 2007

CALOS N’ALMA


Era uma tarde fria de inverno. A neblina álgida limava cada trecho dos olhos, deixando uma nuvem alvadia de indecisões. Pra lá ou pra cá? Ela não tinha respostas e o mapa, este ela não enxergava. Parou um instante após uma longa descida. Tratava-se de rua deserta, as pessoas não trocavam olhares, todos de cabeça baixa como que investigando o chão. Sim. Para ela apenas o chão parecia verossímil. Não sabia o que estava a fazer naquele lugar com aquele tempo. Bem que seu sogro a prevenira. Mas ela era teimosa.Queria porque queria aproveitar o seu derradeiro dia naquela estância de águas tépidas.

Seguia distraída, com pensamentos voltados para dentro. Acabara de se desfazer do mapa. Decidira parar e perguntar numa birosca qualquer. Mal deu o primeiro passo em direção ao letreiro luminoso mais próximo e um estranho lhe abordou de supetão com uma arma em punho. Assustou-se. Seu ímpeto inicial foi o de fugir, sair correndo sem olhar para trás. O homem , todavia , segurou-lhe um dos braços. Ela gritou. Quem conhece logradouros desertos sabe que um grito é muito pouco para despertar uma alma viva. O homem reagiu: - cale-se- disse. Ela obedeceu.

O homem era um senhor de rosto como uma uva passa, repleto de rugas proeminentes que lhe marcavam o semblante duro, quase mascarado. Ao calar ela tomou mais a sério a situação. Analisou o homem cuidadosamente, de alto a baixo. Percebeu que ele tremia num misto – pensou – de frio e nervosismo.Um arrepio percorreu-lhe a coluna vertebral alojando-se no coração. À mente veio-lhe episódios entrecortados do seu atual livro de cabeceira: crime e castigo, de Dostoiévski. Meu Deus, como sofria o personagem. Aquele senhor parecia ser o protagonista do romance russo. Seus olhos dilatados e pétreos armazenavam um frio ainda mais letal do que a temperatura que freqüentava aquele ambiente.

Toda sua vida deteve-se no cano escuro daquela arma, ali, apontada nas suas fuças. Nada menos criativo do que um assalto, com os outros, na cidade grande.Conosco e no interior, o fato toma ares de uma grande tempestade em pleno verão. Das pequenas localidades espera-se tranqüilidade e um bucolismo morno, daqueles que se encontram mais nos livros de José de Alencar. Deu com os burros n’água. As passagens alencarianas transitavam ao largo daquela triste realidade. Diante de si, como um espelho, refletia-se uma progressiva escuridão do tempo presente e realçava-se, tal qual o romancista russo, profecias sinistras do porvir. Sim. Encontrava-se preparada para aspergir ali mesmo, na calçada, seus derradeiros soluços.Já imaginava até o seu obituário e a nota no jornal convidando para o que constaria como sua última aparição pública, o seu velório. Tinha a cabeça já crivada por balas antes mesmo delas evoluírem daquela arma. Seu cérebro não ajudava, apenas se defendia de uma morte prematura numa espécie de suicídio imaginário.

Enquanto seu espírito divagava, seus olhos mais argutos e serenos mantinham-se no homem e naquela garrucha. Dúvidas perpassaram seu interior, num lampejo de lucidez , coragem e medo. Será que aquele senhor tão, digamos, antigo, saberia lidar com uma carabina? ( ou seja qual fosse o nome oficial daquele executor de vidas). Será que não seria melhor partir pro ataque? Tinha para si que era mais forte do que o velho senhor. Morreria ,ao menos, com um pouco mais de arrogância e estilo. Venderia sua vida ao preço de um pêssego no lugar de uma banana. Despertou dos seus questionamentos e de toda sua introversão com a voz do homem.” Passa a bolsa”. Aquele ultimato deixou-a, não obstante, menos dispersa. Centrou sua atenção nos pequenos detalhes que compunham aquele quadro dantesco e anárquico. Notou, só então, que o homem não usava sapatos, tinha os pés completamente expostos. O temor , aos poucos, tornou-se piedade. Ela fez menção de emprestar-lhe o casaco pois ele se cobria de trapos. O homem aceitou a oferta de bom grado. Baixou a arma e mostrou-a mais de perto. Era apenas um pedaço de ferro fosco numa forma tal moldada que se assemelhava muito a um revólver.

Passaram-se alguns segundos sem ninguém dizer nada. O homem envergonhado e ela constrangida com o absurdo daquelas circunstâncias. Um assalto que acabara num gesto amável da parte dela e, ao mesmo tempo, imprudente. Seu sogro a censuraria.

Ela decidiu pedir o casaco de volta e partir. Antes , porém, tornou a observar o homem. Seus pés, nada chamou mais a sua atenção, eles estavam tão calejados que sangravam. Um sangue negro, coagulado. Deus sabe as intempéries por que passaram aqueles pés. Como enfermeira que era, sabia que aquilo poderia se deteriorar para algo ainda pior. Logo, iniciariam um processo inflamatório cuja medicação era caríssima e os postos públicos supriam com certa reserva. Ajoelhou para apalpar aquelas feridas.

- Você não tem um sapato ?- perguntou, ainda agachada.
- Tenho seis filhos moça.- respondeu o homem.

Aquela frase a fez desmoronar. Ela não tinha filhos, mas seu marido desejava meia dúzia. Recentemente passara pelas dores castas de um aborto espontâneo. Não recomendaria tal coisa nem ao seu pior inimigo. Ninguém espera que um ser venha a ser gerado e antes mesmo do seu coraçãozinho bater, desapareça, no vão inóspito da tristeza sem fim. Sua respiração acelerou e os seus olhos marejaram. Algo, entretanto, indistinguível àquela hora e com o vento soprando afoito em ambas as faces.

- Precisamos cuidar desses calos. Venha comigo.- disse
com segurança.

Havia uma farmácia ali em algum lugar, ela lembrava vagamente de ter passado por uma. Sim. Ela estava certa.

Após medicar o pobre senhor, deixou-o sob os auspícios dos enfermeiros da drogaria. Recomendou cuidados e entregou ao velho senhor o suficiente para comprar bons sapatos para toda a família. Ela só não podia assegurar que o dinheiro seria empregado para este fim. A fome talvez fosse mais premente do que os calos. Ela não se importou. Com a confiança do dever cumprido, deixou a farmácia, os calos, a tristeza do velho e partiu.

Passou-se uma primavera desde aquele acontecimento tão, como ela diria, vexatório, talvez seja a palavra mais adequada. Ela terminara de realizar uma especialização e trabalhava no setor de gestão hospitalar de um grande centro cirúrgico.

Sua responsabilidade era enorme e a pressão vinha de todos os lados.Em alguns momentos o velho senhor que tão ingenuamente violara seus códigos de segurança, tragava seus pensamentos. Ela o enxergava no mundo desalmado de um paciente ou de alguém com quem partilhava certa intimidade. As recordações alumiavam-lhe instantes preciosos nos quais a vida , a sua vida, quase exterminada em seus devaneios, voltava a fazer sentido. Por outro lado, ela adquirira, depois daquela opereta , um pouco mais de traquejo ao lidar com seres calejados. Aquele senhor, com os pés em carne viva, conduzia-se de modo trôpego, mas coerente. Ele possuía mais do que calos nos pés, trazia consigo calos na alma. Talvez por tudo isso, por toda aquela vivência.Um senhor que, acuado, reagiu de maneira tão agressiva ao mesmo tempo tão graciosa, levaram-na a tomar determinadas decisões.

Ao descobrir o desvio deliberado de quantidades significativas de morfina do estoque, não parou nem para respirar, denunciou todos os envolvidos aos órgãos competentes. Entre estes estava a sua melhor amiga e colega de trabalho.

Todos os envolvidos tiveram o registro no conselho médico cassado. Ela perdeu credibilidade perante a classe médica. Desgastou-se e acabou abrindo uma doceria para amparar os gêmeos que vieram ao mundo um mês adiantados.

Três anos mais tarde, ela regressou a sua área, a medicina. Agora em outra perspectiva: um mestrado. A sua tese divagava sobre o outro lado: “ A medicina e a sua tensão interna, um organismo que trata outro organismo.” Na abertura do seu trabalho, ela imbuiu-se de toda a carga poética e dramática que aquele velho senhor lhe traduzira tão bem.A frase de abertura foi a seguinte:

“ Ainda que sangrem meus calos, não calo. “

Texto de Marcos André Carvalho Lins
ANTERIORES:

-Céu
-Praia à Noite
-Luz e Flor
-Jardim Fragoso sem Jardim
-Chove ou não chove
-Mergulho
-Lua no telhado
-Viva o coletivo no over-bar
-Irmãs Gêmeas
-Cores da Manhã
-O Guerreiro
-Amar por Inteiro
-A mulher Azul e o Homem Cabeça de Fósforo
-Preço do Brilho
-Litoral
-Fé
-O Sol virá
-Anjos Amarelos
-Torres Gêmeas
-Erosão
-O Dono do Lugar
-Razão D’Alma
-Fadiga
-Luz
-O Amor Floresce num coração de Concreto
-Fênix

Galeria de Imagens

Galeria de Imagens:

CitaçãoCitaçãoCitaçãoCitaçãoCitaçãoCitaçãoCitaçãoCitações

Nenhum comentário: