terça-feira, 18 de setembro de 2007

Candeias


Na rua de barro deixei as minhas melhores lembranças como neblina de poeira que daqui a pouco não existirá mais. O canto dos pássaros era imperceptível e hoje mora em meus tímpanos numa percepção de um passado soberbo e feliz. Um passado pueril com pensamentos devidamente ingênuos, mas que insiste em ser espectro nas minhas invenções. E ainda vejo os seus olhos de mar pernambucano nos meus sonhos nostálgicos. Na sombra de um pé de coração-de-nego saboreei um sorriso e na calçada de cimento destruído pelas árvores vi você sorrir. Em delírios tive você muitas vezes como a minha primeira namorada, mas como sei nunca a namorei, infelizmente eu sei. Porém um beijo sem escrúpulos me mostrou quem é que manda.

“Você, tempo, é quem manda”. E o tempo passou rápido e injusto.

Foi o fim da expectativa.

Depois da tempestade só ficou a destruição e idiota é quem diz a bonança. Quem já se viu bonança em casas despedaçadas por correntes de águas bestiais? Vi o chão se abrir diante dos meus olhos e o diabo sair com todos os seus selos de destruição a tocar, com suas pragas, todos os meus amados. A ganância, intolerância, inveja, ódio. E no fim, para engrossar o caldo da estupidez, a morte. E o diabo me disse “No salão da vida tem dessas coisas. Somos utensílios que com o tempo envelhecem e ficam em desuso por causa de sua fragilidade. E é preciso destruir as almas para conseguir outras, pois a indigência é necessária para construir o novo”. E o demônio desconfigurou-se em várias personalidades famosas e tive aflição por eles, pois muitos eu amava, muitos admirava, muitos desejava conhecer e ser. E vi que tudo era um jogo fugaz do príncipe da mentira.

Na tentativa de fugir dessa realidade macabra, escondi-me entre a rafaméia que me acolheu por um tempo e depois quis me engolir. Era a certeza de que era preciso caminhar em direção ao destino e não havia destino para os loucos. Os loucos desconheciam totalmente o destino. Aceitavam como aceitavam o pão dormido como alimento. Na dura camada da casca e a infeliz suspeita que tudo era casca. Fugi mais uma vez em busca de candeias. Em busca da argila que moldava esperança dentro dos meus pulmões.

Fracionando o meu existir, eu estava na terceira parte com mais de cem quilos e uma barba grisalha. As primeiras folhas da árvore genealógica sentiram o efeito do outono e uma por uma começaram a cair. Foi o início de muitas lágrimas, durante e após esses novos eventos. E era preciso agora lutar pelos talheres para ter direito a janta. Ação desgastante demais para a minha hipertensão.

Na casa dos sofrimentos físicos e emocionais, visitei várias vezes o doutor e encontrei paz e até dormi na penumbra do quarto e na fria maca do hospital, porém, depois do soro era preciso ter alta e continuar a vida com comprimidos brancos e controladores de pressão. A tontura do vinho foi deixada de lado para conviver com a realidade de uma tontura física e incômoda. O açúcar moderado e o sal, totalmente abolido da minha dieta sem graça, foram os meus algozes. Tudo estava seguindo a regra do meu malfeitor. O diabo. Que há muito tempo me vigiava com as suas tenebrosas magias, removendo os objetos do lugar, numa artimanha maléfica para, como num filme de comédia pastelão, me derrubar. Porém, ignorei o apocalíptico e todas as mazelas de uma dívida injusta, e continuei.

Na mesa de compensado barato, passei a exercer uma profissão. Era preciso sair em busca do ouro de tolo para prosseguir com as minhas asneiras, os meus erros constantes. E lá encontrei outra realidade. Um patrão que buscava tempo para poder gastar a sua fração e por isso se tornava marionete e espectador de verdadeiros artistas em dissimulação, e uma massa que não tinha nenhum dom para a arte teatral, e, por isso mesmo, aplaudiam os mestres por medo e obediência. Fui muitas vezes atingido pelas costas sem saber quem eram os meus carrascos. Criatura que bate sem saber o motivo que açoita, mas por achar que sabe o motivo pelo qual apanha. Continuei produtivo, esperançoso e, às vezes, altivo, e sempre era recompensado com belíssimos aumentos de serviço e nunca de salário. Desgastei. Comecei a ter desprezo por tudo. Isolei-me numa tentativa de defesa. Perdi a batalha.

Ainda me lembro dos teus olhos verdes e ainda me lembro de fazer as minhas orações. É bem verdade que as minhas orações são grunhidos toscos e imperceptíveis a ouvidos tão sutis, mas em nenhum momento quis ser como os hipócritas com suas belas e bem preparadas orações. Só espero ainda ter contado com Candeias.

Texto e imagem de Osvaldo Barreto


Marcos André Carvalho Lins é
bacharel em Direito formado na Universidade Federal de Pernambuco e ocupa o cargo de Técnico Judiciário Federal no TRT -6a Região (Pernambuco), sendo também escritor diletante

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