segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Cemitério Clandestino


O barco sangrava o rio como uma pequena semente de silêncio. Seguia sem um rumo , quase moribundo, naquelas águas ancestrais, carregando além dele, dois personagens nativos, e o peso do mundo.

A noite parecia percorrer a superfície pálida do seu rosto, consumando a arte de um coração preso à responsabilidades e paixões. Deixara a vida sedentária na capital para perseguir o rumo incerto de febres, varíolas e malárias. Naquele pedaço inóspito do paraíso, ele se defrontava com estranhos perigos: principalmente com ele mesmo.

Desejava abraçar uma causa, a inconsistência de uma vocação, o cuidar dos seres esquecidos naquele ecossistema quase selvagem e sem coração. Era assim que percebia a selva, um lugar onde a razão imperava, onde ser patrão ou empregado significava mandar ou ser mandado, apenas, onde possuir uma singela tapera representava não ter direito a nada, quem podia comprar, comprava, quem não podia, era engolido pela mata.

Ali, pretendia exercer a medicina. Ali, pretendia dourar o seu destino, concluir a sua sina. Acreditava que as pessoas tinham direito ao mínimo de assistência, informação e partos seguros. Parir ou partir para ele possuíam sentidos correlatos. Foi um parto a sua saída da cidade grande, nasceu de novo quando naquele desmantelo de terras, árvores, animais esquisitos e principalmente, pessoas mal-tratadas pela vida, pela cobiça, pelo descaso do poder de polícia ou pela polícia no seu encalço.

Descia um rio com aqueles dois amigos. Amizades que conquistara por ali mesmo, e talvez por isso relacionamentos comedidos, com medidas bem dosadas de sentimentos, e até certa parcela de distanciamento. Longe dos logradouros urbanizados fica-se com a selva e com o seu próprio espaço. Respira-se melhor , de fato, mas as distorções se acentuam devido ao cansaço, ao enfado da selva, o consumo do verde da própria atmosfera. Tornamo-nos vegetais, raízes nômades, nada mais – pensou.

A moça, de tez parda e manchas de nascença, era uma prostituta mestiça, costumava chamar a si mesma de Albina. Não sabia se por gostar do nome ou a mãe assim a definira. Quando o fim da infância a permitira alcançar o teor da vida, partira com um homem, sem pouso certo, dizia querer se livrar do buxo cheio e ganhar dinheiro em rodeio. Até onde ele sabia não foi bem isso que ocorreu. Teve que adoçar o corpo de muitos cafetões , até alcançar a maioridade e perseguir o sonho do retorno. Voltar ao seu mocambo natalício, recomeçar do início, como se fosse possível.

O outro, de barba mal-feita e olhar tumultuado, ora se dizia ex-detento, ora afirmava realmente ter roubado, ora era perseguido, ora se sentia ultrajado. O que ele sabia é que tinha boa índole, auxiliara bastante na sua jornada mata adentro. Aprendera atendimentos emergenciais e primeiros socorros para veneno de serpente. Além disso, tinha ciência de que torniquetes só em último caso. Dera como nome o apelido de Galego. Parecia que todos procuravam escapar dos tons mais sombrios da alma.

Galego estava com o olho de cobiça em Albina. Agradara dela. Ele não obstou, deixou os dois se amarem embaixo do cobertor.

Foi de repente, num impulso, que galego deu um salto e levantou:

- É ali doutor. Ali à direita.
- Ali o que, Galego?
- O canto da minha anjinha.
- Que anjinha? Bebeste de novo?
- Não doutor. Foi ali que eu presenciei a Anjinha , a senhorinha, vestida de azul e que me apontou o caminho do sul.

Galego já contara aquela estória diversas vezes.

Avistara uma sereia da terra, uma fada, ou coisa que o valha. Segundo ele, naquele ponto do rio. A anjinha, como ele se dirigia ao fantasma, havia lhe apontado o sentido para o qual ele seguiu cauteloso, mas com muita fé.

- Pois vamos descer naquela margem.
- Claro doutor. - E começaram a remar em direção a terra.
Do meio da mata ouviu-se um grito de mulher, um som agudo, dolorido, de temor e desabrigo.
- Vamos, vejamos de onde vem o grito.

Não deu tempo de mais nada. Em terra esperava uma emboscada. Não sabiam, mas entraram em zona de conflito: foram confundidos com o inimigo.

Não deu tempo de mais nada. Apenas escutaram um zunido, de bala. Baixaram, caídos, ali mesmo, cemitério clandestino.

Autoria: MARCOS ANDRÉ CARVALHO LINS


ANTERIORES

-Flores Secas
-José Corajoso
-UniversÚtero
-Ponte
-O tempo e o Vento
-Aniversário
-Maresia
-Semana Marcos André Carvalho Lins III
-Calos N’alma
-Meios
-O Silêncio
-Cosmo
-Copo
-Releitura
-No cais da vida
-3ºconcurso de Fotografia Next-Photo
-Os amigos das Aves
-E você??? É um recifense de verdade???
-Dança – O que cria? O que estabelece???
-Do Telhado
-De todo ser
-Cultura e Mito
-Freud, Cemitério e outras besteiras
-Árvore em Mim
-Arteviva Realiza Musical no Teatro Armazém 14
-Todas as quartas têm de graça.
-Desmatamento
-A santa
-Foi-se
-Baile do Menino Deus é atração no Marco Zero
-E passou...

Imagem de Osvaldo Barreto.

Nenhum comentário: